16 de novembro de 2008

Palavras

Lya Luft
Palavras assustam mais do que fatos: às vezes é assim. Descobri isso quando as pessoas discutiam e lançavam palavras como dardos sobre a mesa de jantar. ... Na escola também se brincava com palavras ; lá como em casa, havia livros, e neles as palavras eram caramelos saborosos ou pedrinhas coloridas que a gente colecionava, olhava contra a luz, revirava no céu da boca... e às vezes cuspia na cara de alguém de propósito, para machucar. Depois houve um tempo (hoje não mais?) em que palavras eram cortadas por reticências na tela do cinema, enquanto sobre elas se representavam cenas que, como se dizia no tempo dos pudores, fariam corar um frade de pedra.
Palavras ofendem mais do que a realidade – sempre achei isso muito divertido. Palavras servem para criar mal-entendidos que magoam durante anos:
- Você aquela vez disse que eu...
- De jeito nenhum, eu jamais imaginei, nem de longe, dizer um coisa dessas...
- Mais você disse...
- Nunca! Tenho certeza absoluta!
Vivemos nesses enganos, nesses desencontros, nesse desperdício de felicidade e afeto. No sofrimento desnecessário, quando silenciamos em lugar de esclarecer. “Agora não quero falar nisso”, dizemos. Mas a gente devia falar exatamente disso que nos assusta e nos afasta do outro. O silêncio, quando devíamos falar, ou a palavra errada, quando devíamos ter ficado quietos : instauram-se, assim, o drama da convivência e a dificuldade do amor.
Sou dos que optam pela palavra sempre que é possível. Olho no olho, às vezes mão na mão ou mão no ombro : vem cá, vamos conversar? Nem sempre é possível. Mas, em geral, é melhor do que o silêncio crispado e as palavras varridas para baixo do tapete.
Não falo do silêncio bom em que se compartilham ternura e entendimento. Falo do mal de um silêncio ressentido em que se acumulam incompreensão e amargura – o vazio cresce e a mágoa distancia na mesma sala, na mesma cama, na mesma vida. Em parte porque nada foi dito, quando tudo precisaria ser falado, talvez até para que a gente pudesse se afastar com amizade e respeito quando ainda era tempo.
Falar é também a essência da terapia: pronunciando o nome das coisas que nos feriram, ou das que nos assustam mais, de alguma forma adquirimos sobre elas um mínimo controle. O fantasma passa a ter nome e rosto, e começamos a lidar com ele.
Há estudos interessantíssimos sobre os nomes atribuídos ao diabo, a enfermidades consideradas incuráveis ou altamente contagiosas: muitas vezes, em lugar das palavras exatas, usamos eufemismos para que o mal a que elas se referem não nos atinja.
A palavra faz parte da nossa essência : com ela, nos acercamos do outro, nos entregamos ou nos negamos, apaziguamos, ferimos e matamos. Com a palavra seduzimos num texto ; com a palavra, liquidamos – negócios, amores.
Uma palavra confere o nome ao filho que nasce e ao navio que transportará vidas ou armas. “Vá”, “Venha”, Fique”, “Eu vou”, “Eu não sei”, “Eu quero, mas não posso”, “Eu não sou capaz”, “Sim, eu mereço” – dessa forma, marcamos as nossas escolhas, a derrota diante do nosso medo ou a vitória sobre o nosso susto.
Viemos ao mundo para dar nomes às coisas : dessa forma nos tornamos senhores delas ou servos de quem as batizar antes de nós.

29 de outubro de 2008

Ensaio sobre a cegueira

Como qualquer cinéfila, aguardava ansiosa o lançamento, aqui na minha cidade, do filme: Ensaio sobre a cegueira, do cineasta Fernando Meirelles. As críticas negativas que o filme recebeu, não são justas nem verdadeiras, mais uma vez Meirelles não decepciona em sua adaptação. O filme é ótimo, não obstante as cenas chocantes de um estupro coletivo, o filme deixa espaço para meditação sim! Sua metáfora é de fácil compreensão, com uma pitada de ironia e humor negro.
Em nossa sociedade ‘pós-moderna’, a cegueira impera no mundo. O homem perdeu o referencial do outro. Somos incapazes, cada vez mais, de enxergar alguém que não seja nós mesmos. Olhamos apenas em torno de si mesmo, raramente conseguimos enxergar os problemas dos outros quando estamos voltados apenas para o nosso ‘eu’. Quando a cegueira toma conta: vem a desordem e o caos. Assim como aconteceu no filme, cegueira produz injustiça social, desigualdade e fome no mundo. Pessoas são subjugadas por outras, num total desaparecimento da figura do nosso próximo.
O homem sem Deus não consegue enxergar o seu semelhante, só conseguimos sentir compaixão com o sofrimento alheio e amar o outro, quando primeiro, o amor de Cristo está em nós. Os nossos olhos são abertos quando temos um verdadeiro encontro com Cristo. “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. O horror e a decadência vividos pelos personagens do filme, são palpáveis e batem a nossa porta, até quando continuaremos cegos?
Como afirmou Saramago: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
Ively Almeida

A Palavra mágica

Certa palavra dorme na sombra de um livro raro.
Como desencantá-la? É a senha da vida a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo, procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade